A REVELAÇÃO
O homem completava noventa anos
alternando leito de UTI e quarto de hospital. Raramente tinha alta e quando
isso acontecia a casa virava uma confusão que se prolongava pelo dia e durante a
noite. O doente não conseguia ter sossego físico nem espiritual. Reclamava de
dores, mexia-se na cama, soltava gemidos que dificultavam até o sono dos
vizinhos. A família já não suportava aquela situação.
Num dos raros momentos de paz e lucidez, o
homem chamou uma de suas filhas, na tentativa de buscar o seu sossego
espiritual. Conto o que aconteceu:
- Você precisa ir à cidade de Village,
procurar uma pessoa que mora no convento das freiras redentoristas, chama-se
Hortência. Ao encontrar-se com ela, não fale nada além de informá-la que você é
a minha filha mais velha.
Nos dias que se seguiram a mulher ainda
procurou saber detalhes daquele pedido, mas o pai não falou uma palavra sequer,
além da insistência da viagem, ao perceber que a filha demorava.
Certo dia, para desincumbir-se da missão
que recebera e acalmar os tormentos do pai, tomou o ônibus da meia-noite e
partiu. Precisava atender a solicitação
do velho que piorava a olhos vistos. Se morresse antes da solicitação atendida,
arcaria ela com um remorso a lhe perseguir pela vida.
Não conhecia a cidade, nem nunca tinha ouvido
falar. Sabia apenas ser distante. Não tinha o endereço do convento. Sabia
apenas que devia encontrar-se com irmã Hortência e dizer-lhe que era a filha mais
velha de Juvêncio.
Viagem longa e conturbada. Passou a noite
em claro. Chegou às quinze horas do outro dia.
O encontro foi marcado para o dia seguinte o que lhe proporcionou nova
noite de pesadelos e aflições. Rolava pela cama daquele hotel sem conciliar o
sono.
Juvêncio pareceu sentir a partida da
filha. Aparentou melhoras. Dormiu sonhando acontecimentos antigos. Demonstrava
aguardar ansioso o retorno da filha. Delirava sorrindo. Entabulava conversas
que ninguém entendia.
O encontro foi rápido. Apenas a moça falara
o que seu pai havia ordenado. A freira -, envolta no seu hábito escuro -, trazia um
véu cobrindo-lhe o rosto para dificultar e impedir qualquer visão. Ouviu
silenciosamente. Fixou seu olhar na pessoa que estava a sua frente por alguns
instantes. Aparentou um estremecimento invadindo seu corpo. Pareceu soluçar. Sem
proferir uma só palavra, levantou-se e desapareceu por uma porta que ligava
aquela sala a um vasto corredor daquela construção antiga.
Acertou a diária do hotel. Pediu um táxi
que a levou à rodoviária. Fez uma ligação pedindo que avisassem o pai de que
estava retornando com a missão cumprida. Chegou ao amanhecer. Estranhou o
rebuliço e a movimentação da casa. Os irmãos e as irmãs pareciam aliviados. Não
sentiu a tensão dos últimos dias.
Somente naquele momento entendeu o
significado do pedido. O pai guardara o segredo por quase oitenta anos e
somente depois de revelado sentiu-se em condições de partir.
Mesmo sem dizer uma só palavra, a mãe
conheceu a filha; e o pai, com mais nada a prendê-lo neste mundo, estava sereno
e parecia reconfortado. Havia morrido
nas primeiras horas daquele dia.
Comentários