COSTUME ANTIGO

Quando minha mãe se punha a lavar as garrafas que ia guardando ao longo do ano, eu sabia que estava próximo o natal. Dedicava cuidado especial na limpeza de cada uma. Não desistia enquanto não se certificasse que tudo estava limpo. Colocava-as de bico para baixo entre o vão de duas ripas para que secassem. No dia seguinte, voltava a examinar uma por uma, completando a limpeza das que ainda apresentavam alguma sujeira.
Eu me perguntava o que levava minha mãe a fazer aquilo nos dias que antecediam o natal. Tanta dedicação e zelo! Observava-a e parecia sentir no seu semblante uma alegria incontida. Desenvolvia aquele ritual cantando músicas que eu não entendia. Uma língua diferente e estranha tomava conta dela nessas ocasiões.
Quinze dias antes que o Noel chegasse, reservava uma tarde de sábado e o domingo, se necessário, para produzir um líquido e com ele encher as garrafas. Para ajudá-la convidava sua irmã mais nova, enquanto nós ficávamos -, crianças ainda entre cinco e oito anos, eu e mais duas irmãs -, observando os detalhes daquele trabalho, muitas vezes atrapalhando as atividades que desenvolviam. Pouco entendíamos daquele rito e repreendidos, púnhamos fim às algazarras. Falavam o polonês, língua que trouxeram do berço. As canções também eram cantaroladas na mesma língua.
O enorme fogão de lenha ficava à disposição de mãe e tia durante o tempo necessário. Em meio aos preparativos,  ferviam água na maior panela da casa e dentro dela iam colocando produtos estranhos. Haviam comprado dias antes e mantinham guardados num pequeno compartimento do armário da cozinha, com a determinação para que ninguém mexesse.
Apesar de não entender uma palavra do que falavam, eu sabia que não discutiam. Desenvolviam um trabalho harmônico e organizado, que se limitava à leitura de um caderno antigo onde estava uma velha receita, ainda escrita naquela língua incompreensível.  
Depois que a fervura começava, espalhavam-se odores provenientes dos condimentos que inundavam a casa toda. Finda a fervura punham-na a descansar e continuavam conversando. Bebida estranha para nós que nunca havíamos provado dela. Passava a noite num estado de sossego, resfriamento e fermentação. Não nos informavam do que se tratava e nós, na ingenuidade de crianças ainda, somente mais tarde fomos entender que com a mistura de ingredientes como malte, lúpulo, fermento e cevada, manuseados e distribuídos corretamente, constituíam-se nos ingredientes utilizados para a fabricação de cerveja.
Foi então que descobri: minha mãe fazia cerveja nos dias que antecediam o Natal! Era a forma mais rudimentar e simples de comemorar uma data tão importante. Costume antigo de seus ancestrais, que trouxera e implantara no seu novo lar.
Não sei por que, mas, anos depois, essa atividade cessou. Ela abandonou aquela herança familiar de fazer cerveja. Ficaram as saudades daqueles cantos, que refletiam tristeza e saudosismo e da língua que também desapareceu. O cheiro da fervura pronta até hoje constitui um marco, foi através dele que tomei conhecimento da cerveja.
Já estávamos mais crescidos e acabamos entendendo que com a melhora financeira da família, ficou bem mais fácil adquirir a bebida nos mercados fornecedores. 

Com essa nova alternativa cessaram os estampidos das garrafas postas para descansar num lugar frio e bem guardadas, no porão de nossa casa. Naquela posição de repouso, por mais alguns dias, continuavam a fermentação e, talvez, porque havia sido adicionado fermento em excesso, várias delas explodiam suas tampas provocando a perda do produto. 

As que sobravam constituíam o ingrediente líquido principal que alegrava a ceia natalina e o almoço do dia seguinte.  Fartavam-se os maiores ao embalo das cervejas e passavam as festividades alegres e felizes. Minha mãe não sabia produzir refrigerantes. Eles só passaram a fazer parte das festividades, quando a cerveja deixou de ser artesanal. Eram conhecidos pelo nome de gasosa.

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