ELA TIROU UNS DIAS
Faz quinze dias que ela saiu. Não houve
briga. Não é separação. Resolveu apenas visitar a mãe que disse estar doente. A
princípio ele não achou nada errado. Até concordou que fosse. Entendia que os velhos
precisam ser cuidados pelos mais novos.
Seria a oportunidade para conviver com
uma experiência nova. Viver uns dias sem a mulher de vinte anos de convivência.
Foi um experimento interessante, mas ela o enganou. Disse que ficaria quinze
dias e já se passavam trinta. A saúde da mãe havia se agravado, justificou.
Ele, nesses dias, acumulou uma série de
experiências. Algumas boas, outras ruins. Todas pedagógicas. No começo até
achou bom ela ter ido. Não precisava ficar aspirando aquela fumaça asquerosa
que havia passado pelo pulmão dela e agora vinha fazer uma segunda filtragem no
seu.
Mas ficou órfão totalmente. Não tinha
mais a marmita que ela fazia para lhe oferecer aquela comida caseira que tanto
gostava. Acabou a janta sempre tentadora. O pão novo e quente do café da manhã
provocava-lhe saudade. A casa então estava uma desordem total. Já no final da
primeira semana a pia não tinha mais lugar para abrigar panelas e talheres
sujos. As roupas se acumulavam pelo quarto, banheiro e já chegavam à
lavanderia. Antes voltava para casa certo de que teria um lugar adequado para
descansar. Casa cheirosa, sofás arrumadinhos, rede sempre armada, cama posta.
Quando fazia trinta dias que estava só,
um acontecimento mudou sua vida. Foi ele que o levou a tomar uma decisão
drástica neste final de semana. Um caso interessante: ao acordar e se dirigir
ao banheiro, o lençol onde dormia veio preso às suas costas. Pisou numa cueca
que estava jogada no soalho e teve um escorregão. Acabou em queda, quando nem
acordado direito tinha. Ainda no chão esparramado, veio-lhe um pensamento:
“você precisa fazer alguma coisa, tome uma decisão! Que tal ligar para que ela
volte, contar-lhe a situação, talvez implorar o retorno”.
Levantou-se. No banheiro tomou uma ducha
forte e ainda com a água morna caindo sobre sua cabeça acabou se decidindo:
“vou fazer uma faxina nessa casa, hoje é sábado, tenho dois dias para modificar
e organizar a anarquia que reina aqui”!
E começou. Gastou a manhã lavando
louças. Estavam tão engordurados os pratos que nem o detergente dava jeito. Ali
teve oportunidade de concluir pela nocividade que a gordura provoca no
organismo. Gruda-se nos objetos e não quer mais sair. Como não fica lá dentro
do corpo, concluiu.
Depois recolheu todas as roupas.
Amontoadas emanavam um cheiro de mofo. Mais forte ainda das que se encontravam
no cesto. A máquina que desse um jeito. Foi enchendo a lavadora. A recomendação
do fabricante estava bem evidente: “capacidade máxima, seis quilos”. Precisaria
pesar? Seis quilos de roupas secas ou já molhadas? Um lençol sozinho pesa um
absurdo! Lavagem completa, com secagem também? Deviam inventar uma máquina que
passasse roupas. O piso da lavanderia ficou só água, mas o trabalho estava
concluído lá pelas oito horas da noite. Não podia dizer que ficou totalmente
limpa, porque não se deu ao luxo de fazer aquele trabalho de analisar peça por
peça e tirar as possíveis manchas, como normalmente ela fazia. Abusou do
amaciante o que ocasionou um perfume pela casa toda.
Durante o tempo de lavação passou
ouvindo rádio e concluiu que as domésticas têm razão de estarem sempre com o
radinho ligado enquanto executam os serviços. Ouvindo rádio aprende-se de tudo:
arrumam-se negócios, conhece-se a situação do país, toma-se conhecimento de que
muitos namoros e casamentos começam ali pela simples anotação de um telefone
que mais tarde será utilizado para uma ligação. Sabe-se das mortes e dos
assaltos que acontecem na cidade, ouvem-se histórias muito bonitas e
sentimentais. Aprende-se, ouvindo rádio, que uma empregada tem todos aqueles
direitos previdenciários e uma enormidade de outros sociais.
Nem é necessário se dizer que ele estava
exausto. Numa conclusão de final de dia, deduziu que o gastou lavando louças e
cuidando de roupas. Tinha o resto para ser feito. Temia que o domingo não fosse
suficiente para concluir o que ainda estava faltando. Fez uma programação:
tinha as flores para molhar, lixo para enterrar, precisava lavar e organizar a
área da frente, limpar a casa toda, tratar de dois banheiros que estavam
grudentos, tirar o pó, passar cera líquida, trocar a cama e passar a roupa que
certamente já estaria seca no final da tarde daquele domingo. Ah, esqueceu-se
que também tinha a gaiola do passarinho para ser higienizada. O coitado estava
triste e nem cantava mais.
Era trabalho para não parar um minuto
sequer. Almoçar não almoçaria, faria uma coisa rápida, uns dois ou três ovos
fritos, misturados com aquele arroz que estava na geladeira há uma semana.
Que domingo teria! Que programa estava
se propondo! Mas concluiu: era questão de sobrevivência! Com tudo limpo e
organizado prometeu-se que não deixaria mais acontecer uma coisa dessas.
Lavaria todas as cuecas quando estivesse tomando banho no final do dia. As
camisas deixaria de molho para lavá-las no outro dia. O mesmo faria com as
outras roupas quando sentisse que estavam precisando de cuidados. A louça seria
limpa assim que terminasse de ser usada. Um pano úmido com um pouco de
querosene dia sim, dia não, pela casa, não deixaria acumular pó. Sacrifício
mesmo seria passar as roupas. Voltou a renovar a idéia da invenção de uma
máquina, porque não conseguia assimilar a idéia do ferro quente.
No domingo levantou decidido e cheio de
vontade. Mas logo no início dos trabalhos uma coisa chamou-lhe atenção: “era
preciso tomar cuidado com os móveis”. Foi essa a dedução lógica quando cheio de
vigor bateu o cabo da vassoura no canto de um deles, deixando ali uma marca.
Veio-lhe à cabeça uma evidência: “ela sabe de tudo, tem as manhas, conhece
todos os lugares, nunca a viu fazendo nenhum estrago. Levando o pano e a
vassoura com uma suavidade que impressionava, ia limpando de mansinho”. Cuidado
dificulta a rapidez, deduziu, porém não há outro jeito.
A limpeza também tem perfume. Foi a
conclusão que tirou quando findas as tarefas pegou do carro e foi dar umas
voltas pela cidade. No retorno, ao abrir a porta o cheiro havia desaparecido.
Reinava o clima de um ar puro, igual ao que sentia ao chegar, ao final das tardes,
no tempo que ela executava os trabalhos.
Constatou uma coisa: não desaparecia o
cheiro da solidão.
Deu-se por realizado quando inspecionou
todos os cômodos. As coisas no lugar. Tudo bem disposto.
Eis que chama o telefone que ficara mudo
os dois dias de trabalho. Era ela. Pediu que fosse pegá-la na rodoviária no
outro dia cedo. Foi tomado de contentamento e ansiedade. Eram dois os motivos:
a limpeza e a chegada.
Após ter escrito isto tudo, foi tomado
de uma coisa estranha: mostrar ou não esse seu escrito quando ela chegasse. Não
estaria se entregando? Valorizando por demais
o trabalho dela? Não seria fraqueza sua dizer que a vida só era-lhe
impossível? Declarar-lhe toda a sua
incapacidade de sobrevivência? Fazer-lhe uma confissão descarada do seu
amor? Dizer-lhe que agora está ciente do
valor dela, da falta que faz em todos os sentidos, da necessidade de tê-la
junto nas noites de frio e nos dias que se apresentam chatos! Dizer-lhe que
pode voltar e continuar esparramando aquela fumaça que se tornou até cheirosa
pela falta. Passear só não tem prazer, ir à casa da praia sozinho é tão triste
quanto tomar chimarrão sem companhia.
Os lençóis estavam limpos e cheirosos. A
noite passou ligeira.
(DO LIVRO HISTÓRIAS SOLTAS - pg. 07 a 10.
Comentários