UMA CRÔNICA MATINAL

Nem bem sete horas da manhã, ele já está com o chimarrão pronto. Descobriu, recentemente, a ceva da bebida utilizando-se de um palito de dente. Depois que a cuia ronca avisando que acabou a água, pacientemente vai derrubando para o fundo a erva que ficou acumulada pelos cantos. Sentiu que com esse procedimento o chimarrão fica mais gostoso: erva bem utilizada produzindo um líquido mais saboroso. 
Liga a televisão. Acomoda-se no sofá. Começa a se inteirar das notícias recentes enquanto a cuia vai roncando entre uma ceva, outra enchida de água quente e um líquido prazeroso. Aprendeu a gostar dessa tradição sem ser gaúcho.
A porta do quarto abre-se e ela aparece ainda meio sonolenta. 
- Bom dia, “nêgo”!
- Bom dia, “nêga”!
Achega-se da cozinha, toma seu remédio matinal e coloca água na chaleira para o café. Ele a chama, enfastiado com as notícias que só contam desgraças.
- Olha o chimarrão! – estende a cuia cheia com água espumando. Está no ponto.  Ela se apossa do objeto e volta para os trabalhos da cozinha. Com uma mão segura e sorve, com a outra vai abrindo gavetas, apanhando utensílios e arrumando a mesa. Ele a observa nessa sua atividade apressada. Não entende porque tanto zelo e pressa. Ouviu o ronco e recebeu a cuia vazia. Convida-a para ocupar o sofá ao seu lado.
- Vão vê que tenho coisas para fazer!
- É...hoje é segunda-feira, muita coisa acumulada! – retruca ele, quase certo de que ela não virá.
A mesa está pronta. Duas xícaras apenas. Antigamente eram quatro. Porque ele continua tomando chimarrão e ouvindo as notícias, ela sai a percorrer o quintal. Ele a vê passando pela janela numa atitude observadora. Examina como estão as flores que acabou de plantar. Antigamente fazia esse mesmo ritual, mas levava entre os dedos um cigarro que ia saboreando enquanto passeava ao redor da casa. Graças ao bom Deus, isso acabou! Certamente ainda sente e deseja o velho vício, mas está contida. Sabe que por detrás daquela fumaça está a morte.
Chimarrão findo, vistoria terminada, sentam-se e tomam o café. Ele indaga dela:
- Qual a programação de hoje?
- Você nunca tem serviço, eu sempre estou cheia.
- São trabalhos urgentes?
- Esquece!

Cala-se. Sabe que se alimentar a conversa, acabarão discutindo. Entende que a alteração do comportamento dela está voltada ao velho hábito de fumar, ainda a persegui-la e a torturá-la. 

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