PRESENTE PERFEITO

Esse meu amigo primava pela honestidade. Fora seminarista e aprendera todos aqueles princípios da ética e da moral que os padres, tão habilmente, sempre incutiam nos que pretendiam se tornar sacerdotes.

Por uma questão de falta completa de vocação, não chegou a terminar os estudos que o levariam ao sacerdócio. Mas o que aprendeu ali naquela escola de formação o tornou bom para o resto da vida. Bom até demais para uma sociedade como a nossa, que se espantava com os princípios defendidos por esse meu amigo.

Apelidaram-no de conservador. Desviavam-se dele para não ouvirem suas opiniões, criticavam-no e até se riam.

Pela sua retidão, tornou-se respeitado, porém. Todos sabiam que ele não seria capaz de praticar nada que viesse prejudicar as pessoas. Todos passavam por ele e o cumprimentavam respeitosamente. Mas preferiam não conversar. Os moradores do prédio sabiam que seu apartamento era o do sexto andar, porém nunca estiveram lá, nem pretendiam fazer qualquer visita. Admiravam-no pela retidão e isso era o suficiente.

Não demorou muito - numa reunião de condomínio - foi eleito síndico, a contra gosto da esposa que não queria mais vê-lo passar as noites fazendo contas e preparando correspondências para encaminhar aos condôminos. Já exercera essa função num prédio anterior, e o resultado não havia sido muito bom.

Mas esse meu amigo decidiu encarar o novo desafio. Andava meio desocupado e tinha consciência de que o prédio estava realmente precisando de ordem. Daria sua contribuição. Acabaria com as festas barulhentas, com as correrias nos corredores, não aceitaria atrasos nos pagamento de condomínio, ordenaria a coleta do lixo e a limpeza dos locais de uso comum. Propôs - numa das primeiras reuniões - uma vistoria mensal a todos os apartamentos. Tinha denúncias de irregularidades sendo cometidas que preferiu não mencioná-las, mas que seriam verificadas.

Os condôminos assistiam o transformar-se do prédio. A organização tomou conta de todos os locais. Ele próprio passou a acompanhar o processamento do lixo, sua guarda e apropriada seleção. Estabeleceu normas para que se evitassem as misturas tão comuns nos materiais imprestáveis. Criou um local onde colocaria todo esse material a espera da apanha pelos homens da prefeitura.

Pois um dia, tão devotado e distraído estava - fazia o trabalho de organizar os pacotes dos lixos no local que ele próprio criara - que acabou se distraindo com a porta. A porta acabou se fechando e ficou ele preso lá dentro. Sem luz. Cheiro forte de produtos que se decompunham. Até ratos passavam por sobre seus pés. Num primeiro momento tentou a abertura da porta sem qualquer resultado.

Acometido de nervosismo ao perceber que suas atitudes não surtiam qualquer resultado, começou a gritar. Soltava gritos cada vez mais desesperados e fortes clamando por socorro. Esmurrava a porta e a li-bertação não aparecia.

Vinte minutos depois, sem forças, sem voz, percebendo que estava próximo do pior, começou a fazer um exame de consciência. Passou-lhe pela mente toda a sua longa vida de sessentão e, ao final, concluiu que não merecia morrer daquela forma.

Não teve tempo para mais nada. Sem forças, acometido de um desmaio, prostrou-se naquele piso frio e escuro. Perdeu a consciência sem nem mais saber que morreria asfixiado pelos gases tóxicos do lixo em decomposição.

Lá no andar térreo, no apartamento número dois, o cãozinho peludo latia para sua dona como nunca fizera antes. Uivava desesperado agarrando-se às pernas da mulher como a querer levá-la para fora. Pela insistência do animal a senhora abriu a porta e o animalzinho saiu correndo. Desceu as escadas que levavam à garagem. Chegando à porta do depósito de lixo uivava aflito arranhando-a com suas patas.

A dona, que chegava em seguida sem nada entender, moveu a fechadura e abriu a porta do depósito. Encontrou o síndico estirado e inconsciente. Lívido, sem pulsações perceptíveis. O cão pôs suas patinhas no peito do desfalecido e começou a lamber seu pescoço. O ar puro vindo de fora invadiu as narinas do homem e chegando aos pulmões trouxe-lhe forças.

Abrindo lentamente os olhos divisou a sua frente, perplexos, dois anjos que lhe traziam a vida.

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