SÓ AOS NOVENTA

Não quis mais saber daquela casa. Pediu a uma das filhas – a que sempre lhe visitava – que o levasse de volta para o interior. Desejava morrer na sua pequena cidade. Ali nascera, crescera, ficara rico, ali casara e criara os filhos.
Depois do que presenciara e da tristeza que sentira, a casa da capital, onde havia decidido passar seus últimos dias, já não lhe oferecia a paz esperada, nem lhe inspirava a confiança e a tranqüilidade que queria.

Aos noventa anos – raros alguns momentos de turbulências – ostentava uma lucidez de gente nova. Os netos faziam silêncio e se acomodavam em círculo para ouvir suas histórias. Adorava um banho de praia e até uma cachacinha ou uma taça de vinho tinha ainda por costume.

Morava com a filha mais nova, que nem tão nova era: entrara nos quarenta naquele ano. A única solteira e por esse motivo, os irmãos e as irmãs acharam que era a pessoa mais indicada para cuidar do pai. Dar-lhe apoio, acompanhá-lo em suas necessidades.
Teve a melhor herança em troca dos cuidados.

Pois agora o velho não queria mais permanecer na convivência dessa filha, nem desejava morar naquela casa. Exigia que o levassem para a companhia de outra, que continuava morando na sua antiga cidade interiorana. Não havia como contrariar o pai, pensava a outra filha, que fora procurada para providenciar a viagem.

Na véspera da partida a cena foi emocionante. Os filhos e filhas residentes na capital, acompanhados dos netos, vieram se despedir.

Comentavam, entre si, que o avô não voltaria mais vivo e que,  quando morto,  já havia decidido que queria ficar lá.
Nunca se habituara com a vida da cidade grande e nem aceitava ser enterrado ali.
Aquele episódio viera no momento certo para apressar seus projetos, mas lhe causaria decepções e amarguras. Elas estavam antecipando a sua partida. Também..., essa idade..., pensava, já era tempo!

Ninguém sabia que o velho tinha coisas e objetos de sua estimação guardados à sete chaves. Para  espanto de todos, adentrou à sala onde a prole estava reunida e os foi distribuindo.
A filha que o levaria de volta presenteou-a com o vestido de casamento da esposa e mãe, há muito falecida. Deu-lhe também um broche que dissera ser o presente de noivado.
A neta mais querida recebeu um lindo colar de pérolas, recordação das bodas de prata.
Uma linda fotografia de recém-casados quis que fosse colocada na parede daquela sala. Que ficasse a cuidar da morada, observar e entender o que se passava ali, talvez inibir ações!
Seria a lembrança doada à filha mais nova.

Cada uma das restantes recebeu recordações que ficaram entre brincos, anéis pulseiras ou pingentes, todos feitos a ouro com vestígios de diamante.
O genro que seria o motorista do carro e com quem sempre manteve mais afinidades, ganhou de presente as luvas de pelica. Disse nunca tê-las usado por serem muito grandes.
Ninguém ficou sem presentes.
Até os que não vieram foram lembrados.
O filho que morava no exterior recebeu uma passagem para quando quisesse voltar.

Não se via um gesto de contentamento. Dominava o espanto e a perplexidade entre os presentes. Que teria acontecido para que tomasse uma decisão tão drástica? Sussurros que se espalhavam, mas nenhuma conclusão vinha à tona.

A neta predileta, aos prantos, abraçou-se ao avô pedindo que não fosse. Não entendia o motivo daquele comportamento, insistia que explicasse. Naquela idade, esta escolha não era a melhor. Ali os recursos estavam à porta. Os melhores médicos à sua disposição. Quase todos os familiares moravam na capital. O interior não dispunha de recursos para lhe socorrer no agravamento de suas doenças. A filha com quem iria morar já passava dos setenta anos.

Enervou-lhe tanta insistência.
Jamais queria presenciar novamente aquela situação constrangedora que a caçula lhe proporcionara.
Aquilo não era coisa para um homem da sua idade!
Fez um retrospecto no comportamento da filha e começou por tirar suas conclusões. Realmente ela nunca gostara do convívio frequentado pelas outras irmãs. Sempre desenvolvera atitudes arredias em todos os estágios de sua vida. Nunca tivera um namoradinho na infância, nem na adolescência. Aos quarenta ainda estava solteira.

No começo das visitas nem percebera. A filha trazia sempre muitas amigas. Eram jovens alegres e, particularmente, bonitas. Passavam o tempo bebericando, conversando, ouvindo músicas, dançavam pela sala se abraçando e assim levavam as noites naqueles entretenimentos. Conversas animadas, beijos na boca, revistas que propagandeavam uma Associação que não conhecia, nem tinha ouvido falar.

A filha acabou lhe dizendo que esperavam a aprovação da Lei para a legalização de tudo.

A decisão de não morar mais naquela casa foi uma decisão sua. Ficou a imaginar que aquele quadro posto agora na parede, poderia lhe informar dos acontecimentos futuros.

Comentários

Carmem disse…
Mário, Parabéns. Um texto que reconheceria ser seu em qualquer lugar. Claro, conciso, sem dramas!
abraço

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