O VIGIA

Vejo-o todos os dias, há quase quinze anos, sentado ali. Na esquina da Rua Paulo Setúbal, com outra que declino do nome. No bairro do Hauer. Devia ter uns cinquenta anos na época que o conheci, e edificavam um prédio comercial cuja construção se arrastou por vários anos. Para mim, ele era o guarda da obra.
A maior parte do tempo passava sentado, observando os carros que trafegavam pela rua, bem à frente.

Quando o prédio ficou pronto e alguns comércios se estabeleceram no lugar, continuou na sua antiga postura: sentado numa cadeira de madeira velha, acenando para os conhecidos que cruzavam.
Com o tempo, passei a cumprimentá-lo também, porque era quase obrigatório ter que parar naquele semáforo, todas as manhãs, quando me dirigia para o trabalho.

Nossas relações nunca foram além desses acenos. Certa manhã vi-o de pé. Caminhava lentamente demonstrando sentir dores. Visto nessa postura, aparentava ser mais magro. No intervalo do sinaleiro fechado, percorreu com dificuldades toda a extensão do terreno parecendo fazer uma vistoria.

Após a construção ter-se tornado um espaço comercial conhecido e disputado, sua cadeira continuou no mesmo lugar. Ali passava a maior parte do tempo. Muitos comércios fecharam portas. Outros faliram. Novos chegaram. As paredes frontais receberam inúmeras tonalidades de cores, à medida que novos inquilinos iam se estabelecendo. Apareceram até frases comuns quando as coisas mudam: “agora sob nova administração”.

Somente ele parecia não se dedicar cuidados. Deixava a critério da natureza e do tempo. Que fizessem o seu trabalho! Seus cabelos foram mudando de cor. Em seu rosto apareceram rugas e um claro cansaço foi se evidenciando. Já não o via carregando pedaços de madeira, amontoando-os num canto. Raramente conversando com os clientes que chegavam para as compras ou saberem dos preços. A cadeira de madeira velha resistia.
Mas, um dia, depois de certo tempo ausente, o homem apareceu com uma bengala. Sentado, segurava-a por entre as pernas. Havia emagrecido e estava mais velho. Porque era inverno, durante a estação manteve-se vestido com a mesma blusa surrada, que, certamente, exalava mau cheiro.

Novas cores foram ocupando as fachadas. Letreiros modernos também apareceram. O homem passava o inverno acomodado na sua cadeira absorvendo os raios de sol e observando o desenrolar dos fatos. Movimentava sua muleta batendo-a nas pedras lisas da calçada. Que estaria pensando! Que vida estranha aquela! Não trabalhava e também parecia ter perdido todas as características de ser o vigia do prédio.

Foi-lhe crescendo o bigode que logo se tornou grande, caindo sem cuidados pelos cantos do rosto. Acresceu um boné escuro amarronzado que desprendidas as abas protetoras, também lhe aqueciam o pescoço. Finalmente apareceu com um óculos de lentes grossas, presas por uma armação resistente.

Faz mais de trinta dias que o homem não ocupa mais o seu lugar costumeiro. Sumiu também a velha cadeira. As lojas continuam sua velha rotina de abrir pela manhã e fechar antes do anoitecer. Há tempos também não ocorriam mudanças de cores.

E o homem? O homem...? Poucos dos passantes diários, nem os freqüentadores das lojas notaram a sua falta. Havia morrido. Quando as vendas se estabilizaram e os aluguéis passaram a ser rendosos. Era começo de primavera.
Não era o vigia do prédio, mas sim o dono.

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