FAZENDO AS CONTAS

Há tempos Raul sofria com os seus dentes. Uma herança que veio de berço, resultado de ter nascido numa família pobre, sem recursos financeiros para pagar um dentista, diziam alguns.
Mas outros afirmavam que ele era um desdentado porque havia frequentado muito os dentistas na sua infância.

Duas teses que acabam se encontrando no final do caminho e com idênticos resultados. Na sua época de menino deixava-se os dentes apodrecer, passava-se muitas e muitas noites enfrentando dores quase insuportáveis. As inflamações dentárias inchavam as bochechas. Os dentes inflamados latejavam e como remédio mais comum recebiam doses de cachaça ou de álcool, depositadas na boca para que amortecessem anestesiando tudo. Os dentes eram tratados com remédios caseiros e, muitas vezes, extraídos em casa mesmo. Uma linha resistente enlaçava cuidadosamente o causador das dores, e num puxão firme ele era retirado, acabando com todos os sofrimentos e dores.

Por outro lado, aqueles que conseguiam ir a um dentista, recebiam um tratamento não menos implacável: anestesia, boticão, dente ensanguentado exposto no sugador, fim da dor.

Vê-se então que os dois sistemas para tratamento de dores dentais eram dirigidos para a mesma solução: a extração. E a prática da eliminação era até mais acentuada e comum nas mãos dos dentistas.

Hoje -  todos sabem -  o dente é tratado com muito carinho. Nenhum profissional quer vê-lo fora da boca do paciente. Trata-o, faz apologias diante do paciente, explica os problemas que poderão vir sem ele. Falta de mastigação dos alimentos, etc., etc.

Mas aconteceu que Raul, um dos desdentados que pouco foi ao dentista nos seus tempos de garoto, um daqueles que teve suas bochechas inchadas, que passou noites e noites sem dormir, que depositou cachaça e fez gargarejos na tentativa desesperada de sentir algum alívio com a boca limpa, chegou ao dentista em busca de uma solução para os seus problemas.
Disse ao doutor que estava ali porque queria saborear uma maçã sem necessidade de cortá-la em pedacinhos ou comer uma costela assada retirando a carne do osso com os dentes.

O profissional ouviu os lamentos e os sonhos daquele senhor já em idade avançada e deu-lhe como solução, para que pudesse realizar todos os seus desejos triturantes, o método do implante. Detalhou os procedimentos e acabou explicando que dentro de um ano estaria ele com boca nova. Cheia de dentes firmes e afiados.

Raul se animou. Ficou imaginando o que não faria com uma boca assim, ele que passara para a faca o trabalho de preparar os alimentos que teria que engolir.

Os finalmente chegaram em seguida. Foi informado que o valor do milagre custaria o preço de um carro popular.

Raul estava com setenta anos. Quase todos passados pelas dificuldades da mastigação, dores de estômago, má digestão. Explicou a situação em casa, comentou entre os amigos mais chegados. Foi quando, um deles, num realismo duro e frio, fez-lhe a pergunta: será que vale a pena tamanho investimento numa idade dessas?

Comentários

Anônimo disse…
Situação difícil, perspectiva cruel... dentes novos na idade da papinha?
Abraço, Fausto

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