LINO

Recebeu este nome por causa de um conhecido antigo chamado Laudelino. Laudelino era uma boa pessoa, mas todo desconjuntado. Trôpego, andava com dificuldade e enxergava pouco. Nunca mais o vi. Nem sei se está vivo. Mas inspirado neste nome veio o Lino. Nome abreviado para ficar mais fácil.

Quando o ganhei de um amigo, não tinha nome. Era um ser sem qualquer atração, mas possuía um predicado, disse o doador: sabia cantar como ninguém. E era manso, bem mansinho. Só mais tarde fui descobrir o motivo de tanta mansidão.

No começo fiquei apreensivo de estar com um passarinho que julguei ser selvagem, porém o doador me tranquilizou garantindo ter nascido em cativeiro e trouxe-me sua certidão de nascimento juntamente com um anel que pediu que colocasse na sua perna.

O Lino passou muitos anos vivendo conosco. Durante esse tempo foi nossa alegria, distração e encantamento. Foi mudando de cor ao longo do período. Cada vez cantava mais depois que passava o período de troca de penas. Durante essa transformação, de cinza sua roupagem foi se transformando em amarelo, ano após ano, até amarelar por completo. Quanto mais amarelava, mais cantava. Quando viajávamos, ia junto. Passeava mais que muita gente. Conheceu Pato Branco, Querência do Norte, Florianópolis, Itapoá e muitas outras cidades pelo caminho. E esses passeios se tornaram tão comuns que depois de certo tempo passou a cantar dentro do carro. A Lu conversava com ele diariamente. Ele parecia entender o significado das palavras. Inclinava sua cabeça quando era chamado pelo nome, chegando a bater as asas e abrir o bico.

Na primavera - período que as aves mais cantam - chegava a atrapalhar nossas conversas e chamava a atenção de quem passava pela rua. Muitos me perguntavam se eu tinha interesse de vendê-lo. Achava aquelas propostas atrevidas e desconsiderava sempre. O Lino não tinha preço, o Lino seria sempre nosso.

Certo período aconteceu que a Lu precisou se ausentar de casa por um longo período e eu saía logo cedo, apenas voltando ao anoitecer. Ele passou a viver muito sozinho. Quando eu retornava do trabalho sempre o encontrava já todo encorujado e com a cabeça escondida entre as penas. Aquela postura fazia dele uma bola que não se movia. Já estava dormindo. Muito raramente reagia às minhas palavras e quando fazia não eram aquelas reações de alegria antigas. Eu limpava sua gaiola diariamente, trocava a água e atualizava a comida sem sentir muita alegria nele. Eu não tinha dúvida de que estava sentindo a ausência da Lu. Ela sempre lhe dava verduras novas, trocava de lugar para que apanhasse sol, ou para evitar que ficasse em correntes de ar, sempre muito perniciosas nesta nossa cidade, costumeiramente fria.

Lino virou triste. Evidente que sentia a ausência. Não tinha mais as mesmas atenções. Sempre me dispunha a conversar com ele nos meus retornos, mas sem muito resultado.

Certa vez, numa das nossas idas à casa da praia, tive a idéia de soltá-lo. Talvez pudesse recuperar novas alegrias e voar para onde quisesse. Seria possível escolher suas comidas, encontrar uma companheira e namorar em liberdade, da forma como quisesse. Foi quando constatei que esse meu desejo não seria possível. Ele não sabia mais voar e estava cego, motivo principal da sua mansidão. Nessa ocasião não foi morto por um similar da sua raça, porque impedi que esse fato se consumasse. Ficou com a cabeça tomada de sangue e muitas penas lhe foram arrancadas do corpo. O agressor estava tão enfurecido, quando batia no Lino, que o peguei em minhas mãos sem que tivesse se dado conta de que fora feito prisioneiro e passou a agredir-me com suas bicadas potentes .

Depois desse acontecimento, conclui que o Lino era um ser totalmente dependente. Não conseguiria mais viver sem proteção. Seus limites de sobrevivência haviam se estreitado tanto que não poderiam ir além do espaço mínimo de sua gaiola.

Senti-me também culpado pelo que estava acontecendo, mas decidi que teria por obrigação a missão de protegê-lo. Consultei um veterinário para ver a razão da sua cegueira. Deu-me muitas explicações, mas a que mais me preocupou foi que a causa disso deveria ter sido a falta de vitaminas nas comidas que lhe eram dadas. Passei a lhe fornecer rações balanceadas, mas nunca mais enxergou e nenhuma melhora aconteceu. Não conseguia voar porque suas asas estavam atrofiadas, resultado do longo tempo de inatividade.

Muitas vezes, quando precisávamos viajar e não era possível sua ida, deixávamos aos cuidados dos vizinhos, que nunca se negaram a abrigá-lo e tratá-lo. Eu gostavam do Lino. Era um passarinho simpático e cantador que não oferecia trabalho nenhum. Sempre que a comida era trocada ou recebia alguma coisa nova, o pagamento vinha em forma de canto. Tinha vida e era inteligente. Sabia agradecer.

Nas nossas conversas telefônicas, a Lu sempre perguntava dele. Queria saber se estava sendo bem tratado, se o recolhia todos os finais de tarde para que dormisse bem protegido, se eu estava repondo as rações, trocando a água e fazendo as limpezas diariamente. Pedia se conversava com ele. Eu confirmava que tudo estava sendo feito da forma como havia me explicado e ela ficava tranquila. Dizia-lhe apenas que ele já não cantava mais como antigamente. Não sabia se por estar velho ou por sentir saudade estava triste. Admirava o interesse e o desvelo dela.

Um dia precisei viajar meio urgente e sem qualquer programação. O Lino ficaria sozinho, se não arrumasse alguém para cuidá-lo. Seriam muitos dias e a solução era deixá-lo com algum vizinho. O primeiro a quem pedi abrigo aceitou a missão. Porque viajaria no dia seguinte logo cedo, deixei o Lino na casa desse amigo na noite anterior. Recomendei cuidados e ele tranquilizou-me dizendo que era uma satisfação ter aquela companhia em sua casa. Coube-me organizar as rações que seguiram junto e ao transportá-lo até a sua temporária morada ele me pareceu triste, triste, mais triste do que nos outros dias.

A notícia quem me deu foi a Lu, ainda quando eu me encontrava viajando. O Lino morreu, disse-me ela ao telefone. Devia ter morrido de saudade, prossegui numa explicação lacônica e triste. Sentiu-se sozinho, sem a proteção costumeira, sem as vozes que estava habituado a ouvir. Disse-me o amigo que havia amanhecido morto. Conclui que naquela mesma noite o processo que juntou tristeza, abandono, solidão, ausência invadiu seu ser tão pequeno e angustiado que não teve forças para enfrentar a vida daquela forma. Entregou-se à morte. No meu retorno, o amigo mostrou-me o lugar que o havia enterrado. Não quis vê-lo assim. Restou a gaiola que preferi destrui-la, não devia servir para manter um novo prisioneiro, nem a queria para continuar alimentando recordações que precisava esquecer.

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