UM CARTÃO PARA JANDIRA


Infeliz dele, acometido de uma doença incurável. Vários meses lutou contra os efeitos contrários que o atacavam e iam minando suas resistências. Primeiro parou o rim, depois vieram complicações nos intestinos. Seguiram-se um acometimento de glicemia alta, dificuldades na respiração que culminaram em pneumonia. Tudo resultado de um câncer. Quando ele aparece, dizem que já se pode preparar o caixão.

Inútil foi o esforço da família, perdidas as noites sem sono. Antes de completar um ano da descoberta, deu adeus. Nos momentos finais parecia conformado e certo da partida, mas durante todo o tempo que antecedeu à entrega, sempre transmitia um desejo enorme de viver.

Mas o resultado é ingrato com os que se vão. Todos os presentes têm sempre um mesmo recado conformista à família que fica, principalmente ao parceiro ou parceira: Deus quis assim. A vida continua. Bola pra frente!

Coitados dos que morrem ! Raramente não é assim. Passados os momentos críticos da velação, da missa de sétimo e trinta dias e do término do inventário, os que ficam vão se esquecendo do que se foi como uma vela que desaparece ao queimar-se. Muitos são até xingados porque deixaram as propriedades com as documentações enroladas.

Neste caso a história foi até curiosa. A viúva permanecia o tempo todo ao lado do marido morto. Certamente lembrava-se dos momentos bons de antigamente, sem se esquecer dos ruins passados juntos. Talvez mantivesse uma conversação interna reclamando a partida prematura, provavelmente o cobrava das puladas de cerca, mas concluindo que, no fritar dos ovos, a convivência tinha sido boa.

Foi nessa situação que se achegou da viúva um senhor que apresentou condolências e tirando do bolso um cartão disse ser advogado. Colocava-se à disposição para eventualidades futuras. Ela nem leu, mas num gesto automático o guardou num dos bolsos do seu casacão negro de luto. Nem sabia para que. Fazia frio.

Passados os dias mais críticos, numa queda de temperatura, lançou mão da velha vestimenta e ao examinar um dos bolsos internos encontrou o cartão que havia recebido naquela noite do velório. Não tinha muita lembrança da pessoa que o entregou, lembrava-se das palavras dele. Viu bem nítida a profissão de advogado posta abaixo do nome, ao examinar com cuidado agora. Desviou o pensamento, não era momento para pensar naquilo.

Só decidiu agilizar as coisas quando os amigos e parentes disseram que era necessário se encaminhar o inventário. Qualquer atraso nesse procedimento incidia multa pesada. O governo estava de olho na sua parte e era necessário adotar medidas.

No dia seguinte à pressão de amigos e parentes, tomou do cartão e ligou. Tentou se identificar. O advogado não tinha lembranças exatas de quem se tratava. Mas o profissionalismo dele fez marcar dia e hora no escritório. Apesar de todos os pesares, receberia pela consulta. A viúva anotou todos os esclarecimentos e uma relação que precisava cumprir no recolhimento da documentação. Ainda envolta com a memória do falecido, não teve nem coragem de fixar um olhar mais demorado no profissional. Devia voltar na semana seguinte, com os documentos solicitados.

O marido morto passou a ser xingado pela desorganização que estavam as coisas. Documentos incompletos, prestações atrasadas, escrituras sem averbações e uma coisa que ele nunca havia dito: a documentação da fazenda não existia. Tinha um documento de posse, quase sem valor, que nem registrado estava. Não sabia quantas cabeças de gado tinham.

A situação serviu para aguçar um ódio e uma revolta que foi ficando cada vez mais clara. Passou a criticá-lo com todos os que conversava. Mas acabou recolhendo toda aquela desorganização e no dia marcado estava no escritório. O advogado examinou a papelada e olhando fixamente na viúva revelou que a coisa estava complicada, mas que faria tudo para resolver o problema.

- Documentação enrolada – disse demonstrando conhecimento e segurança.

- Veja o que é possível fazer, Doutor – falou Jandira desviando o olhar do seu interlocutor.

Honório - assim se chamava o bacharel - teve lembranças dela e da noite que lhe entregara o cartão. Os documentos enrolados comprovavam o que amigos lhe disseram: seria um trabalho rendoso.

O tempo foi passando. Faltavam papéis. Precisavam reconhecimentos de firmas. Autenticações em cartório. Anuência dos filhos. O único genro - que não queria entrar no assunto - foi intimado a participar sem o que, disse-lhe a esposa, não havia motivos para continuarem juntos. Poderes da mulher amada, subjugando um marido apaixonado.

Jandira estava por desistir de tudo, quando foi chamada por Honório. Precisaria viajar até a cidade onde se localizava a fazenda para tentar resgatar os documentos pendentes daquela propriedade. O genro se ofereceu para ir junto. Ela recusou os préstimos dele. A filha sentiu-se ofendida e exigiu que o marido acompanhasse a mãe. Que faria uma mulher sozinha, argumentou.

Quando retornaram, os documentos conseguidos trouxeram uma luz ao trabalho de Honório. No seu gabinete, examinando aquela parafernália toda, já conseguia fazer uma estimativa da grandiosidade daquela herança. O morto era enrolado, mas deixara uma viúva rica!

Havia se passado quase dois anos quando Jandira, considerando o aproximar-se de um novo inverno, sentiu necessidade de fazer uso do velho casacão. Foi quando novamente localizou o cartão já amarelado num dos bolsos. Tinha perdido todas as esperanças e até do telefone esquecera. Mas decidiu ligar.

- Amanhã às 16 horas – falou Honório.

- Algum progresso? – pediu Jandira.

- Ainda não, mas os caminhos estão abertos – informou.

- Às 16 então – confirmou ela.

Não sei se pelo tempo, se pela maneira como estava vestido, Honório parecia diferente. Mais atencioso, mas prestativo, mais interessado. Gastou um tempo que nunca teve disponível para explicar a situação daquele inventário. Sorriu por várias vezes fixando seu olhar no dela que timidamente era desviado, mas claramente evidenciando uma satisfação particular e íntima.

- Estamos na última etapa, Jandira! – falou ele.

- Nem acredito no que estou ouvindo – disse ela.

- Falta só a homologação do juiz – explicou Honório.

- Deus seja louvado! – exclamou Jandira abraçando-se ao doutor.

Um mês depois - com todos os presentes ao funeral do passado - casavam-se na Igreja do Rocio.

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