O Cabeça Chata
Nunca fui um assíduo leitor de Monteiro Lobato. Conhecia
pouca coisa dos seus escritos e até nas minhas antigas aulas de literatura, nunca dei muito destaque a esse escritor brasileiro.
Depois que conheci Taubaté - sua terra natal - e o Sítio
do Pica Pau Amarelo, que ainda lá é mantido à duras penas, passei a me
interessar.
Estou lendo um de seus livros: “Na Antevéspera” – Editora
Brasiliense, e a cada capítulo que passo mais me encanto com o pensamento desse
paulista.
Deduzo que pela sua capacidade crítica, sempre
se opondo ao sistema político vigente e fazendo uma análise realista da
situação brasileira, foi ele muito incômodo menosprezado e colocado no
esquecimento.
Fiquei boquiaberto com o capítulo “O cabeça chata”, às páginas
235-237, que transcrevo na íntegra:
“Nada mais difícil do que julgar. Quem ouve as razões dos
dois lados, vacila em dar sentença. Porque ou dá razão às duas partes ou não a
dá a nenhuma.
A vesguice do regionalismo no Brasil criou o hábito de dar
sentenças antes de atendidas as razões das partes. Frequentemente ouvimos um
nortista dizer que o paulista é isto ou aquilo e vice-versa. Mas paulistas,
nortistas, gaúchos ou mineiros, quando se conhecem, mudam logo de parecer. Percebem
o falso dos julgamentos coletivos. Somos, de norte a sul, terrivelmente irmãos,
nas qualidades e nos defeitos. E a norte, a sul, a leste e oeste existe a mesma
quantidade de gente boa e de gente má.
Depois do fracasso da revolução de 1932, quando São Paulo
foi invadido pelas tropas federais, a exasperação contra os nortistas chegou ao
apogeu. O “cabeça chata”! Com que gosto os paulistas estigmatizavam esses
irmãos nordestinos que o governo federal fardara e lançara contra nós! A
expressão “cabeça chata” dizia tudo, principalmente na boca das mulheres,
sempre tão hábeis na destilação dos venenos verbais.
Lembro-me dum caso melancolicamente triste ao qual denominarei:
“O Caso da Dama Paulista e do Cabeça Chata.” Coisa vulgar. Simples incidente de
rua – mas caso em que o Orgulho teve de baixar os olhos para esconder uma
lágrima.
Eu havia tomado um ônibus na Praça da Sé e sentara-me no
banco fronteiro ao ocupado por duas senhoras – a Dama Paulista e outra. O
veículo seguiu. Na primeira parada entrou um homem moreno, anguloso, recurvo –
o tipo clássico do nordestino. Veio sentar-se ao meu lado.
A presença daquele homem no mesmo ônibus que ela tomara
irritou terrivelmente a orgulhosa dama paulista, e ei-la a desbafar-se nos
termos mais cruéis.
- “Nem conheço mais a minha terra”, começou a dizer à meia
voz para a companheira. “A gente põe o pé na rua e só vê disso, essas “coisas”
que o norte manda para cá, para estragar a cidade. Deus que te marcou alguma
coisa em ti achou. O achatamento da cabeça é marca de ruindade” – e foi por aí
além, a rosnar as impertinências mais ofensivas.
Aquilo incomodou-me. Se o homem perdesse a paciência e
revidasse, tínhamos escândalos e dos piores. Olhei para ele, certo de vê-lo já
rubro de cólera em ponto de explosão. Enganei-me. Sua expressão era de calma
absoluta, embora um tanto dolorosa. Tinha a cabeça baixa, como quem está absorvido
em cismas.
E a dama a dar-lhe.
- “Andam morrendo de fome por lá e quando caem aqui ficam
como os donos da casa. Ah, eu é que queria ser governo, para mostrar como se
faz! Expulsava-os todos! É cabeça chata? Então, rua! Isto aqui é nosso. Não
pode estar sendo estragado com a presença dessas lacraias...”
Era demais. Se o nortista não se ofendia, eu me ofendi por
ele. Embora paulista, a atitude daquela dama estufada de orgulho me
envergonhava – e, mais que isso, me exasperava. Deliberei intervir, chamá-la à
ordem. E, voltando-me, bruscamente, comecei:
- Minha senhora, permita-me que lhe diga que...
Mas não fui além. O cabeça chata me deteve, pondo a mão no
meu ombro.
- Não! Não a irrite ainda mais. Ela seria capaz de
arrancar-me o olho que resta...
Só então lhe notei o defeito.
- Cego dum olho?
- Sim. Perdi a vista direita num dos combates do Túnel,
quando me batia por São Paulo.
Fiquei de olhos parados por alguns segundos. Depois
voltei-os para a dama orgulhosa, que estivera atenta ao diálogo. Estava muda, de
cabeça pendida, procurando qualquer coisa na bolsa entreaberta. O revólver para
matar o cabeça chata? Não... O lencinho...”
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