RUBIÃO

Quando precisou fazer um cadastro, pediram-lhe nome, endereço, número do CPF e do RG. Ele rapidamente apresentou o Cadastro de Pessoas Físicas e a Carteira de Identidade. O endereço, simplesmente ditou: MPF 1959.

A moça, uma mulher jovem e simpática, não entendeu direito, mas anotou. Nunca havia visto endereço residencial semelhante àquele. Pediu se era o nome de uma rua, qual era a cidade e o estado. Indiferente à pergunta, ele não respondeu, apenas indagou se o cadastro demoraria a ser aprovado. Não tinha dinheiro e precisava comprar pneus à prestação. Já estava com a viagem atrasada e a mercadoria estragaria se não chegasse dentro do prazo.

Na situação em que se encontrava não poderia nem sair dali. Dos 18 pneus que o caminhão utilizava, só três ou quatro aguentariam a viagem. Seria um dinheiro incalculável! E não eram apenas os pneus, precisava de câmaras, de protetores, de arrumar a maior parte das rodas, pois se deixasse amassadas do jeito que estavam estragariam as peças novas.

A moça insistiu, repetindo a pergunta que ficara sem resposta. Ele sentiu uma angústia interna que lhe apertava a garganta e sufocava o peito. Lembrou do seu passado. A casa nova, toda mobiliada, a expor sua numeração num lugar bem visível. A esposa, os filhos, a geladeira cheia, som a invadir a casa toda, e a churrasqueira sempre funcionando. Amigos e convidados que nunca faltavam, rido e conversando.

Os anos bons haviam passado e as perspectivas não eram boas. A casa vendera-a assim que veio a separação. Partes divididas. Os mobiliários ficaram com ela; algumas coisas carregou-as depositando num bar-racão de fundos do quintal dos pais de onde foram tiradas, tempos depois, sem qualquer serventia, quando se constatou que os cupins comeram suas partes internas, inutilizando-as.

Num dos últimos encontros de Rubião com os amigos, observou-os todos aparentando situações financeiras boas. Carros novos e muito bem vestidos. Diante disso não se conteve:
- Me contem o segredo de vocês. Eu trabalho feito louco, dia e noite, sábado e domingo e não consigo ter um carro novo.
- A receita é simples – respondeu um deles – nós investimos na Caixa Econômica, você somente na caixa de pelos.

Achou que não deveria mais utilizar o endereço dos pais, pois as correspondências que eram encaminhadas para lá se resumiam à cobranças, multas de trânsito, impostos atrasados, notificações judiciais cobrando pensões alimentícias ou indenizações provenientes de atropelamentos e acidentes. Eles pouco entendiam daquela papelada toda, mas elas serviam para deixá-los cada vez mais preocupados, deduzindo que a vida do filho não estava boa. Isso sem contar com os excessos de bebidas que comprometiam a profissão tirando-lhe o senso do perigo, acrescido ao provável consumo de drogas, dedução feita pelas atitudes estranhas que passou a fazer parte do seu comportamento diário.

Fez do caminhão a sua casa. Organizou uma cozinha rudimentar. Um reservatório de água instalou anexo ao compartimento onde passou a guardar as tralhas de cozinha. A parte traseira da cabina ficou reservada a uma cama estreita e desmontável. As roupas foram se acumulando, cheirando suor e concentrando sujeira. Assemelhando-se a um ninho sujo e mal programado.

Umas fotografias do passado guardava-as num álbum já todo seboso e desgastado pelo constante manuseio. Havia ali fotografias do casamento, do filho recém nascido, das festas e das churrascadas expondo espetos de carne farta que pingavam gordura nas brasas acesas. Seus amores de adolescência que nunca mais ouvira falar, fotografias da família ainda quando todos estavam em casa.
Foi trazido ao presente pela secretária.
- Senhor, estou precisando do seu endereço sem o qual não poderei analisar este cadastro.
- MPF 1959 -, voltou a repetir.
- Quero o nome da rua, o número da casa, a cidade e o estado - insistiu ela.
- Então tire uma cópia deste documento. E apresentou o certificado do caminhão. Este documento tem me garantido a compra de peças, sempre que necessito de alguma reposição.
- Vou falar com o chefe – disse ela.
- Se precisar eu assino um documento, mas preciso dos pneus – completou ele.

Quando o gerente recebeu o cadastro entregue pela secretária, quis logo saber do endereço.
- Ele disse que é esse aí: MPF 1959. É para tirar uma cópia deste documento.

O gerente demorou sua observação no papel. Estava comprando 15 pneus. Uma excelente venda para aqueles tempos de vacas magras! Franziu as sobrancelhas para confirmar aqueles dados estranhos. Ordenou à secretária para que solicitasse mais dados.

- Se o senhor não fornecer seu endereço correto o cadastro não será aprovado – falou a secretária.
- Diga ao seu gerente que esses dados estão completos. Indicam a placa do meu caminhão. É o meu único endereço.

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