DESCONHECIDOS
Naquele momento, chovia a cântaros. O
dia começava a amanhecer. Uma senhora, apoiada num dos pórticos do cemitério da
Água Verde, ouvia histórias que eram contadas por uma pessoa que não conhecia
nem nunca havia visto antes.
Numa das capelas mortuárias, velava-se
um morador do prédio onde morava. Sem faixas, nem coroas. Conhecia-o de
cumprimentos nos corredores ou pelas reuniões do condomínio. Estava ali, mais
por causa do social, movida por um sentimento de solidariedade. Havia passado a
noite, porque o morto não tinha nem parentes para velá-lo.
Após longas horas de conversas - numa
noite chuvosa e gelada que não queria passar - aquela senhora contadora de
histórias com quem permaneceu à noite, pareceu-lhe uma velha conhecida.
Uma das histórias enterneceu-a, enquanto, compadecida, observava o defunto cada vez mais pálido, em meio às velas que se
consumiam. Nem seu nome sabia. Buscou-o nos imbróglios funerários, sem que
aquela descoberta lhe pudesse trazer alguma recordação. Era um morto qualquer
que certamente teria seu nome, família, profissão nos obituários dos jornais daquele
dia.
Eis a história:
Há trinta anos, eu estava com vinte e
acabava de ter uma filha. Logo cedo pedi ao marido, porque a criança chorara a
noite toda, que fosse à panificadora comprar ingredientes para o café. Ao lado
havia uma farmácia: que adquirisse um remédio infantil para cólicas. Ele foi e
porque demorava a voltar, com a criança entre os braços, desci à portaria e fui
informada pelo encarregado que ele não havia retornado. Muitas horas se
passaram e acabei concluindo que o marido havia desaparecido.
Passou-se um dia, uma semana, meses,
anos e nunca mais tive notícias do companheiro. Senti-me só, traída e
abandonada. Teria a menina que estava ali nos seus braços indefesa a requer
proteção. Não apareceu uma carta, nem um bilhete, o telefone nunca chamou.
Trinta anos depois, um contato. O
primeiro susto. A grande descoberta. A filha completava idade naquele dia.
Talvez pudessem comemorar juntos. A assistente social de um hospital era quem
estava no outro lado da linha: um paciente terminal ali internado necessitava
de sangue compatível. Ele havia dito que tinha uma filha, dera endereço,
telefone e o nome da mãe.
A interlocutora perguntava e ela,
trêmula e com voz engasgada, dizia que Rute era realmente sua filha. Havia
casado e se encontrava morando nos Estados Unidos.
O resto da história estava ali. Cheia de
segredos e silêncios. Aquele corpo sofrido e enrugado pelas vicissitudes da
vida a empalidecer entre os castiçais que se cobriam de velas derretidas, não
teve tempo de receber o socorro da criatura a quem lhe dera a vida.
Os anos de separação tinham criado distâncias,
revoltas e tristezas que culminavam numa morte solitária e cruel.
(do livro Histórias Soltas - páginas 73 e 74)
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