O MENINO SAPECA
A meninada, naquele tempo, vivia uma
vida de criança diferente. Não tinha nada dessas coisas modernas que o
progresso oferece para se divertir e passar o tempo. Nem existiam as leis tão exigentes, sempre a
proteger a classe mais indefesa.
Pois o Rodolfo nem completara dez anos e
já parecia dono do seu nariz. Fazia coisas que nem gente grande se atrevia.
Gostava de bola e passava quase todas as tardes correndo atrás dela nos campinhos
da cidade onde morava. Eram quase todos meninos da mesma idade os que
participavam das peladas e quando chegava o entardecer , se dirigiam para suas casas cansados e
normalmente com escoriações pelo corpo.
Rodolfo também apreciava nadar nos
riozinhos do lugarejo. Mas esses rios
eram tão pequenos e rasos que a solução era construir açudes provisórios. Enquanto a água ia represando por causa das
tábuas que colocavam, por algum tempo faziam o curso do rio subir e aproveitavam
para nadar. Banhavam-se nus. Executavam saltos mortais quando a represa
provisória inspirava confiança. Quantas vezes esses nadadores acrobatas eram
levados pela fúria das águas ao se romperem as trancagens.
Daquela vez haviam conseguido reunir um
vasto material arranjando junto a uma serraria que mantinha os refugos de
madeira amontoados esperando a queima.
Aquelas tábuas, postas uma ao lado da outra, dariam uma boa represa.
A garotada marcou uma tarde de
quinta-feira para a construção da sua piscina provisória. Pronta, tinham a
certeza que a natação estava garantida. Eram madeiras fortes, bem largas e a
água daquele rio jamais conseguiria destruí-las. Um dia de sol forte, calor
intenso e material disponível, construir uma represa seria o maior
divertimento.
Mas acontece que o pai de Rodolfo – que
tinha no lugarejo uma sapataria – justo no dia combinado para a construção do
açude, chamou o filho e lhe disse sem nenhum rodeio:
- Hoje você fica na sapataria! Faça
companhia ao Gervásio. Preciso ir a Joselândia comprar material sem o que os
sapatos encomendados não poderão ser feitos.
Rodolfo não falou nada. Ouviu a ordem do
pai e assim que ele sumiu na esquina deixando rastros de fumaça de sua
lambreta, não pensou muito:
- Gervásio, você pode ir embora. Vou
fechar as portas. Só volte amanhã cedo.
Inicialmente o empregado opôs
resistência e se negava a acatar a ordem do menino.
- Não vou fazer isso! Seu pai determinou
que você ficasse aqui cuidando. Não há o que fazer se não acatar as ordens
dele.
- Suma... Ordenou o rapaz ao lado da
última porta que se fechava.
Gervásio não teve alternativa. Depositou
o sapato que fabricava em cima da mesa. Despiu-se do avental de sapateiro e
caminhando para a saída, pegou a rua subindo em direção da sua casa. Estava
convicto de que enfrentaria problemas no dia seguinte, mas teria como explicar
ao dono a sua partida antes do horário. Coisa de rapaz irresponsável pensou!
Os companheiros de nado esperavam
Rodolfo na barranca do córrego. Era ele quem orientava a cuidadosa colocação
das peças. Já imaginavam as águas do rio represadas e fundas. Os mergulhos
seriam seguros. O trampolim improvisado posto na parte de maior profundidade
ofereceria divertimento e segurança.
Pronto o trabalho, gastaram o restante
da tarde sem sentirem o tempo passar. Quando de volta à casa, percebera que o
chefe da família já havia retornado. A
lambreta parada no seu lugar tradicional. Não viu o pai, que naquelas ocasiões,
sempre ocupava uma cadeira próxima ao fogão de lenha. Aproximou-se desconfiado,
pois a janta já estava posta. Sentia-se exausto. Água dá uma fome..., pensava.
Repentinamente, sentiu-se aprisionado
pelos cabelos da nuca. Não conseguia ver quem fazia isso. Pela força e rudeza,
não tinha dúvidas de que se tratava do genitor. Não ouviu sequer uma palavra.
Sentiu a primeira chibatada desferida em suas costas. Ainda tentou se desvencilhar nos primeiros
momentos, mas as pancadas caíam sempre com maior fúria. Estava preso. Já
debilitado de tanto apanhar. Gritava pedindo socorro quando foi atingido na
cabeça. A pancada provocou-lhe um
desmaio.
- Chega de bater a criança! - gritou a
vizinha que chegava apressada, já conhecedora da impetuosidade do vizinho – não
vês que podes matá-lo?
Irmãs e irmãos menores choravam ao redor
do menino desmaiado, cheio de vergões vermelhos pelas costas e coxas. A esposa
e mãe não falava nada. Sabia e temia que contrariar o marido naquelas
circunstâncias, poderia provocar consequências desastrosas. Achegou-se do filho
inerte e com um pano úmido começou a tratar da pele agredida. A cabeça e a
fonte machucadas.
Aos poucos o menino foi recobrando os sentidos. Passou a
noite entre soluços e dores, atenuados pelas compressas da mãe. Na manhã
seguinte teria a escola. Gozações dos colegas estavam garantidas, e nunca
poderiam ser explicadas nem desmentidas. Os hematomas e vergões estavam por
todo o corpo.
No
retorno, quando subia a rampa para chegar a casa, ainda pode ver o sorriso
maroto e vingativo do Gervásio. A vizinha que o salvara acenava-lhe compadecida
pedindo que respeitasse o pai. As irmãs se achegaram a ele e sentiram pena do
seu aspecto. Não passavam de velhos hábitos que só o tempo seria capaz de
modificar.
Verdade.
Tudo isso aconteceu. Não se chamava Rodolfo. O menino arteiro era eu.
Confirmado o velho ditado de “quem apanha não esquece”. Já completando meus
cinquenta anos, um dia, com meu pai na casa dos 80, fiz menção ao episódio. Ele
não tinha mais lembranças do acontecido, disse-me.
Eis
o perigo: “quem bate, esquece”.
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